segunda-feira, 7 de julho de 2008

O Contratualismo em Phillipe Du Plessys Mornay - 2007

O Contrato nas Vindiciae
Frank Viana Carvalho
O autor das Vindiciae tomará emprestado de seus antepassados a teoria contratual e a desenvolverá de tal forma, que logrará fazer um casamento entre a teoria política do poder e o conhecimento jurídico de seus dias. Para Henri Morel (1979)[1], as várias obras políticas do século XVI já haviam feito o que os historiadores do direito chamariam de “a segunda renascença do direito romano”. (p. 285). É justamente na análise desse contexto que Hauser (1963), para se referir aos domínios político e jurídico, utilizou a expressão “a modernidade do século XVI”. Uma das grandes contribuições dos monarcômacos a essa modernidade, se não a maior, foi o desenvolvimento da teoria contratual.[2] E de todos, sem dúvida, o tratado que apresentará essa teoria de forma clara e bem fundamentada, serão as Vindiciae.
Ressalte-se que Mornay não trata o tema como uma novidade. Théodore de Bèze já havia trabalhado o assunto e certamente o autor das Vindiciae deveria conhecer as referências contratuais feitas, tanto pelo autor do Le Politicien, como por George Buchanan na sua obra monarcômaca.[3] A ligação da teoria política e do direito também não era uma novidade – é suficiente lembrar como os legistas de Filipe, o Belo, haviam no começo do século XIV tentado justificar o poder supremo de seu mestre pelas fórmulas achadas no ‘Digesto de Justiniano’ (Princeps legibus solutus est ou Omnia sunt principis). Mas ainda não havia até o século XVI uma teoria que trouxesse e justificasse de forma clara, a teoria contratual nas relações entre o soberano e os súditos. Morel (1970) esclarece que havia desde a época do império romano “divergências de interpretação sobre o entendimento do poder real que duraram séculos”[4], e acrescenta a novidade de encontrar uma teoria que partisse do direito privado procurando explicar as questões do poder público: “a teoria do contrato elaborada pelos monarcômacos”. (p. 545 e 546).
Mesmo sendo uma idéia derivada, Paul Janet (1971), ao acentuar a importância da teoria do contrato exposto na obra de Mornay, vê nela “uma idéia futuramente destinada a uma singular fortuna, então totalmente nova e original”. (p. 160). Talvez, a ênfase que Janet desejava dar ao contrato nas Vindiciae era de como a idéia estava sendo apresentada. Buscando nesta parte de nosso trabalho um aprofundamento maior no texto das Vindiciae, o desenvolvimento do contrato no império romano e na Idade Média será analisado ao final desta tese.[5] Assim, partindo da idéia de Bèze, considerado como o autor do duplo contrato, Mornay desenvolverá uma teoria contratual “diferente e original, a única na verdade a se apoiar sobre um verdadeiro fundamento jurídico tirado do direito romano”. (MOREL, 1979, p. 293).

A primeira Aliança do Duplo Contrato


A fim de descrever o tipo de relacionamento que há entre Deus, o rei e o povo, as Vindiciae nos apresentam sua proposta contratualista. Há duas alianças (dois contratos) interligadas, na verdade um duplo contrato: o primeiro entre Deus, o rei e o povo, e, o segundo, entre o rei e o povo .[6] Assim é resumida a primeira aliança:

Isto ficará mais evidente pela consideração do pacto [foedus] que se fazia entre Deus e o rei – visto que Deus dignifica seus servos com o título de associados seus. Havia um duplo pacto na investidura dos reis: o primeiro entre Deus, rei e povo, no sentido em que o povo deveria ser o povo de Deus; o segundo entre rei e povo, que enquanto ele bem comandasse, bem seria obedecido. (Vindiciae, p. 12).

A primeira aliança (dentro do duplo contrato) foi definida pelas leis judaicas.[7] Referindo-se ao povo de Israel, o autor das Vindiciae escreve: “Na investidura de Joás, vimos que houve um aliança sagrada entre Deus, rei e povo ­- ou, como afirmado em outros lugares, entre o sumo sacerdote Joiada, todo o povo, e o rei –, no sentido que deveria ele ser o povo de Deus.[8] Da mesma forma, aprendemos que Josias e todo o povo fizeram uma aliança com Deus.” (idem, p. 25). Outros exemplos são apresentados e neles fica claro que, na efetivação desta primeira parte do duplo contrato (duplex foedus), o sumo sacerdote, em nome de Deus, estipulava ao rei e ao povo: se eles atentariam que Deus devia ser ‘adorado de forma pura e apropriada no reino de Judá’, isto é, se o rei governaria de tal forma que permitisse ao povo servir a Deus e o manter à lei de Deus. Então, rei e povo, como partes promissórias, prometiam manter a lei de Deus e se entregavam a um juramento solene de adorar Deus acima de tudo.
Também são apresentados exemplos de alguns juízes e dos reis israelitas Saul, Davi e Salomão. A investidura deles será exemplo para os ‘reis cristãos’ da Europa quinhentista. Como poderia esse pacto ser considerado na Europa do século XVI? Stephanus Brutus traz a idéia de que “embora a forma da igreja e do próprio reino judaico tenham mudado”, o que em princípio era limitado a Israel pode ser “difundido por todo o mundo [cristão]” – “os reis cristãos substituíram os reis judeus”.[9] E para os reis gentios, vale o mesmo princípio? Para o autor das Vindiciae, mesmo se eles não foram visivelmente ungidos por Deus, sem dúvida ainda são seus ‘vassalos’, e recebem seus poderes ‘dEle somente’, se eleitos por sorte ou por outro procedimento. Ele dá o exemplo de Ciro e Nabucodonozor como reis que, embora não tivessem tido uma investidura nos moldes da ‘aliança’ judaica, eram reis estabelecidos por Deus”.[10] Mas assim como os reis são eleitos por Deus para manter esta primeira aliança, também podem ser removidos por Ele se tentam superdimensionar o reino, se não desejam manter a lei de Deus de acordo com a aliança ou se perseguem os que desejam observá-la. Nabucodonozor, Belzazar, Alexandre o Grande, Antíoco IV Epifânio, Nero, Calígula, Domiciano e Cômodo são exemplos de governantes citados pelo autor como tendo recebido de Deus a punição. (Vindiciae, p. 22-23). Ao analisarmos esse ponto fica evidente que, sendo o rei um ‘vassalo’, em havendo conflito de interesses, é Deus quem deve ser obedecido na condição de ‘Senhor’ do feudo. O povo não é obrigado a obedecer um rei que ordena algo contrário à lei de Deus, e se obedecesse, seria rebelde.
O compromisso da primeira aliança envolve diretamente os aspectos ligados à religião e à adoração a Deus. Essa fórmula se apresentará de diferentes formas na Escritura e acabará se repetindo no conselho (princípio) dado por Jesus Cristo. ‘Dar a Deus o que é de Deus’ é cumprir esta primeira parte da dupla aliança:

Deixe que cada alma’ diz Paulo, ‘esteja sujeita a um poder maior; visto que não há nenhum, exceto o de Deus’ (...) Poder-se-ia concluir o suficiente a partir destas palavras que Deus é para ser obedecido ao invés do rei. Visto que se é para obedecer ao rei por causa de Deus, certamente esta obediência não pode ser contra Deus. Mas Paulo quis excluir toda a ambigüidade: ‘O príncipe’, acrescentou, ‘é um ministro de Deus para nosso bem a fim de fazer justiça’ Eis que segue-se mais do mesmo, porque estabelece-se que o senhor deve ser obedecido ao invés do ministro. Todavia, ele ainda não considerou isto suficiente. Disse, ‘Dai tributo a quem o tributo é devido, honra a quem a honra é devida, e teme a quem o temor é devido’; como se tivesse dito, com Cristo: ‘Dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus.’ O tributo e a honra são de César, e o temor é de Deus. Da mesma forma, Pedro diz: ‘Temei a Deus, honrai o rei. Os servos obedecem os mestres, mesmo os irritados.[11] (Vindiciae, p. 28-29).

Interessante é perceber que o autor das Vindiciae consegue de fato mostrar os compromissos do povo e do rei para com Deus em exemplos e passagens do Velho e também do Novo Testamento das Escrituras. Caberia ao rei manter a Igreja, a lei e a fé, zelando pelos princípios da nação. Nesse contexto, ressalte-se, também é mencionada a lei, ao apresentar os compromissos do duplo contrato relacionados às duas tábuas dos mandamentos dadas a Moisés. A primeira compreende a adoração, o respeito e a obediência a Deus, ligados assim à primeira parte da aliança; e a segunda tábua, as obrigações para com o próximo, que serão exploradas na segunda parte do duplo contrato. Elementos adicionais também serão adicionados à primeira parte da aliança ao adentrarmos na segunda questão. Nela, a proposta contratualista será melhor explicada e ampliada.
Historicamente Deus já havia firmado uma aliança com o povo de Israel – isso de uma maneira muito singular, separando-o como povo escolhido.[12] Nesse contrato primordial, notamos por um lado que todo o povo limitou-se a atentar às leis de Deus e a proteger a igreja, e por outro, que estava prestes a banir os ídolos de outras nações da terra de Canaã. Foi uma aliança que envolveu a todos [universi] antes que a nação tivesse um rei e deixa claro, para Mornay que “houve este acordo entre Deus e o povo”. (idem, p. 34). Mas esta aliança ainda não fazia parte do duplo contrato que somente seria estabelecido séculos mais tarde quando o povo de Israel passou a ser governado por reis.


O desenvolvimento do Duplo Contrato e a segunda Aliança


A partir do momento em que esse povo passou a ter reis, como as nações vizinhas, houve a necessidade de um novo pacto, na verdade, uma renovação do antigo contrato. Como se daria escolha e o estabelecimento dos reis em Israel? Quais compromissos estariam envolvidos? As Vindiciae apresentam as respostas: o rei era estabelecido por Deus, mas pelo povo e para o povo – que é o “povo de Deus”. Mornay reapresenta a questão do contrato com informações adicionais. Embora recebesse a confirmação de Deus para reinar, como foi o caso de Saul, Davi e Salomão, o rei somente seria confirmado na Assembléia do Povo, diante de todos – oficiais e povo. Ele afirma:

Isto ficará mais evidente pela consideração do pacto que se fazia entre Deus e o rei – visto que Deus dignifica seus servos com o título de associados seus. Havia um duplo pacto na investidura dos reis: o primeiro entre Deus, rei e povo, no sentido em que o povo deveria ser o povo de Deus; o segundo entre rei e povo, que enquanto ele bem comandasse, bem seria obedecido. (Vindiciae, p. 25).

O primeiro e o segundo contratos são envolvidos num só eixo de obrigações mútuas do rei e do povo para com Deus, e do rei e o povo entre si. Sendo que na primeira parte deste contrato a ênfase era religiosa e na segunda parte, civil, era necessária uma solução para a aparente contradição entre os dois tipos de investidura. Se para os israelitas não havia essa dicotomia, pois eram ‘o povo de Deus’, as Vindiciae deixam muito claro que esta distinção é importante e necessária, pois as questões civis necessitam ter um âmbito separado das questões religiosas.
E qual a necessidade da participação do povo neste ‘contrato’ e nesta ‘cerimônia’ de investidura? Estaria apenas sendo ‘notificado’ ou teria esta escolha (eleição) feita pelo povo um caráter consultivo para o seu consentimento formal? O que se vê é que a confirmação não visava apenas dar um caráter público à cerimônia, também era uma clara demonstração de que o rei ‘dependia’ das outras partes pactuantes (Deus e o povo) para ser entronizado. Ainda mais – sendo óbvio que Deus era superior ao rei e ao povo –, era necessário que o povo de alguma forma fosse igual ou superior ao rei para que o ‘consentimento’ fizesse sentido.[13] A partir daí, temos a clara explicação da importância da participação do povo:

Mostramos para qual propósito [a aliança] era ordenada entre Deus e o rei; resta explorar por qual razão foi estabelecida entre Deus e todo o povo. É absolutamente certo que Deus não o teria feito em vão. Visto que a menos que o povo ainda possuísse autoridade para prometer, e garantir sua promessa, a aliança teria sido claramente redundante. (...) Ter confiado a igreja a um homem simples e único teria sido arriscado, então ela era recomendada e confiada a todo o povo. (...) Deus queria que as pessoas permanecessem como garantia. Nessa estipulação que está em consideração, Deus, ou em Seu lugar, o sumo sacerdote, é a parte estipulante; o rei e todo o povo, a saber Israel, são as partes promissórias, ambas juntamente e, de fato, voluntariamente ligadas a uma e à mesma causa. (Vindiciae, p. 36-37).

Junius Brutus apresenta todo o povo como pactuante, associados de Deus neste caminho contratual. O autor está aqui recorrendo à noção de segurança ‘pessoal’ ou garantia, apresentadas também na lei romana sobre o contrato, e mais especificamente, nas leis da obrigação nos casos de débito, no qual duas ou mais pessoas eram conjuntamente obrigadas pela mesma quantia.[14] Destaca-se numa observação direta do texto que a estipulação era unilateral, produzindo numa parte (neste caso Deus) um direito, mas não uma obrigação, e em outra (o povo) uma obrigação, mas sem direito e, sem poder “se valer do benefício de divisão outorgada pela nova constituição de Justiniano”. (idem, p. 38).20 É verdade que as conseqüências positivas do cumprimento do contrato se refletiriam em benefícios que poderiam indiretamente ser também considerados como direitos do povo. Assim Deus, o credor, poderia demandar daquele que lhe apraz e, “é muito mais provável que seja das pessoas do que do rei”, visto que, pelo que representam, são mais do que um só. (idem, p. 37). Sendo que Deus ‘elegeu’ o novo rei, a responsabilidade do povo e do governante seriam similares no cumprimento do pacto, embora as obrigações fossem diferentes.[15] A comparação feita por Mornay avança um pouco mais:

Em resumo: assim como quando uma das partes promissórias arrisca insolvência esbanjando seus bens, a outra pode levantar uma ação eficaz contra ele, para que sofra perda por causa do erro de seu co-devedor, então, similarmente Israel pode agir contra o rei, ou o rei contra Israel, devendo qualquer um deles próprios cessar com os ídolos inteiramente, ou quebrar o aliança [foedus] de qualquer maneira, para que um deles pague a punição pelo outro. (Vindiciae, p. 38).

Essa interpretação de Mornay traz não só as responsabilidades para ambos, mas também o dever de zelar pelo cumprimento do contrato. O sentido dessa participação do povo é de ser um pactuante solidário nas obrigações civis e religiosas. Assim, o povo tinha o “direito de prometer isso”, “cumprir” e, a “responsabilidade” no cumprimento.[16] O erro de um acarretaria também sofrimentos ao outro.[17] Além disso, o rei tem uma responsabilidade adicional como líder do povo – seu exemplo é facilmente seguido por todos. Cabe a ele, pois, ser zeloso no cumprimento das duas partes do contrato, a fim de influenciar positivamente o povo. Essas duas partes compreendiam também uma interpretação das duas tábuas da lei, conforme anteriormente apresentado. A primeira tábua refere-se a Deus (os quatro primeiros mandamentos) e a segunda, ao próximo (os seis últimos mandamentos). Jesus os resume quando fala: “Amarás ao Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma, de todas as tuas forças e de todo o teu entendimento, e ao teu próximo como a ti mesmo.” (Lucas 10: 27).
Aqui há uma aplicação direta e indireta da teoria do duplo contrato. A primeira tábua refere-se a Deus e seu relacionamento com o ser humano. Dessa forma, o primeiro contrato ocorre diretamente com Deus e esta não é uma visão restrita ao ponto de vista teológico – aqui a ênfase é política e social, numa sociedade na qual Deus era de fato participante. A segunda tábua está ligada ao relacionamento com o próximo e aí reside o segundo contrato: o rei e o povo, como seres humanos, deveriam celebrar um acordo entre si para um relacionamento positivo e de benefício mútuo. O rei não poderia exigir mais do povo do que aquilo proposto no contrato e vice-versa.
A segunda aliança do duplo contrato apresentava as obrigações contratuais entre o rei e o povo. Distingue-se nas declarações, as responsabilidades e obrigações civis, embora haja um claro entrelaçamento das questões civis e religiosas nas obrigações contratuais do povo de Israel. De uma forma geral, “o rei jurou observar a lei de Deus, e prometeu, até onde fosse capaz, preservar a igreja”. (Vindiciae, p. 54). É interessante observar que, se na segunda questão da obra de Mornay, a ênfase recai sobre a resistência ao rei que assola a religião e deseja ab-rogar a lei de Deus[18] – a qual está relacionado ao primeiro contrato. Na terceira questão, esta ênfase se desloca para a resistência ao rei que está arruinando a comunidade[19] – e isso está relacionado ao segundo contrato.


Duplex Foedus


O segundo contrato é de caráter político, situando-se no plano social e civil. No contexto das Vindiciae - e, no caso, o contexto da obra apenas reflete o momento histórico que a viu nascer – os dois contratos, ou, de outra perspectiva, as duas alianças no interior deste acordo, embora examinados de forma particular em questões diferentes, estão ligadas, formando um conjunto sistemático e coerente. Estão aí formulados os dois contratos que constituem o centro do sistema: pelo primeiro, de caráter especificamente religioso, cria-se entre o rei e o povo, partes solidárias, uma obrigação comum com Deus; pelo segundo, de caráter temporal, constitucional, determinam-se as obrigações mútuas entre o rei e o povo. E porque o rei seria obrigado a cumprir sua parte neste contrato? A primeira resposta é que ele havia sido eleito e estabelecido por Deus e pelo povo, e conseqüentemente, a segunda era a sua aceitação do cargo. O contrato trazia em si os elementos da condicionalidade – permanecesse o rei no cuidado dos interesses do povo e na defesa da fé, e ele teria o apoio do povo e a proteção divina.
Castro (1960) tenta resumir a questão: “Os reis foram estabelecidos por Deus para, juntamente com o povo, possibilitar o sólido estabelecimento do reino de Deus na terra”. Ao fazê-lo, Deus firmou um contrato com o rei e com o povo, “partes solidárias e mutuamente obrigadas”. Tal contrato tinha por objetivo fazer com que o povo se tornasse “povo de Deus”, isto é, o rei e o povo “conjuntamente prometiam tudo fazer para que as leis de Deus fossem cumpridas”. “Tal contrato não diz respeito apenas ao povo judeu, mas a todos os povos cristãos.” Assim todos os reis e povos cristãos são “solidariamente obrigados a obedecer às Leis de Deus.” (p. 91).
A despeito de haverem distinções entre questões civis e religiosas, não se pode, contudo, estabelecer uma separação mais profunda entre o primeiro e segundo contratos mencionados nas Vindiciae. No contexto da obra, o plano religioso e o político estão mesclados de forma indissociável, constituindo isso uma de suas peculiaridades mais marcantes. Este entrelaçamento reflete as circunstâncias históricas da obra de Mornay, confirmando o pensamento de Harold Laski (1953), o qual afirma que “todo sistema político é o reflexo natural de seu ambiente histórico, e não existe qualquer obra política de influência que não seja, em essência, a autobiografia de seu tempo”. (p. 10). Nisto está a virtude do autor das Vindiciae – a apresentação de uma moderna teoria contratual[20] – que vinha atender ao aspecto político, jurídico e religioso da sociedade francesa do século XVI e, ao mesmo tempo em que projetava uma futura democracia representativa, justificava as pretensões huguenotes. Kantorowicz (1998) enfatiza que,

(...) a vertente religiosa no interior da teoria política certamente foi forte durante a época da Reforma, quando o direito divino dos poderes seculares foi proclamado mais enfaticamente e quando as palavras de São Paulo, ‘Não existe poder senão o de Deus’, atingiram uma importância anteriormente desconhecida em relação à sujeição da esfera eclesiástica à esfera temporal. (p. 26).

Nessa linha, Mornay vai além e procura mostrar que as relações entre os líderes religiosos e a comunidade de fiéis, isto é, a Igreja (Eclesia), também era por vezes apresentada em termos contratuais. Essa concepção se aplica, inclusive, para a liderança da Igreja – esta é a concepção do autor das Vindiciae, que demonstra estar bem atento ao que aconteceu com relação à igreja católica, quando afirma que “os concílios de Basiléia e Constança estabeleciam diretamente que um sínodo ecumênico era superior ao papa”. (Vindiciae, p. 48).[21] Ele ainda afirma que aquele “que aceita autoridade de uma Assembléia é inferior à aquela Assembléia, embora superior aos indivíduos” que a compõem. (idem). Em Constança, uma das auto-atribuições dos fiéis era poder depor os líderes religiosos quando estes se afastassem do caminho de Deus. Para Mornay isso seria natural, pois “os reis são simplesmente vigários de Deus”. (idem, p. 9). Essa analogia do poder do concílio sobre o papa, em relação ao poder do povo sobre o rei, pode ser considerada uma evolução do pensamento escolástico. Para Tomás de Aquino, sendo Deus a fonte de toda autoridade, segundo o ensinamento paulino, o povo transmite esta autoridade a aquele que ele escolheu para governar: “Dominus et principatus, non esse de jure divino, sed de jure humano”.[22]
Para retomar a interligação que há entre os dois pactos, Mornay faz uma síntese das duas alianças no interior do duplo contrato:

Na primeira aliança [foedus] ou contrato [pactum] a piedade torna-se uma obrigação; na segunda, a justiça. Na primeira, o rei promete obedecer a Deus piedosamente; na segunda, comandar o povo justamente. Na anterior, promete cuidar da glória de Deus; na última, do bem-estar do povo. Na primeira a condição é, ‘Se observares minha lei’; na última, ‘Se retribuir a cada indivíduo seu direito’. (Vindiciae, p. 160).

A virtude dessa análise é deixar com clareza que as obrigações da primeira aliança são de natureza religiosa: ter em vista a piedade; obedecer a Deus piedosamente; cuidar da glória de Deus; observar a lei de Deus. Por outro lado, a segunda aliança estabelece os compromissos com o povo: zelar pela justiça; comandar o povo justamente; cuidar do bem-estar do povo; retribuir a cada indivíduo segundo o seu direito. Esta conjugação freqüente entre as duas tábuas da lei, entre os dois contratos e entre os aspectos religiosos e civis também se apresenta nas duas questões que tratam da resistência ao tirano.


[1] Professor na Faculdade de Direito e Ciências Políticas de Marseille na década de 1970.
[2] Vários pesquisadores da teoria política consideram os monarcômacos como ‘modernos’. Paul Janet (1971) assim os considera, quando compara as Vindiciae com os escritos da época. Jean Touchard (1971, p. 160) os julga como “precursores da moderna democracia” e Henri Morel (1979, p. 293), além de utilizar a expressão “novidade”, também chama a teoria contratual monarcômaca de “diferente e original”. Entretanto, há que se considerar que as múltiplas faces da teoria apresentada por eles já haviam sido anteriormente abordadas por diferentes autores. Vale ressaltar que os monarcômacos, ao buscar referências nas escrituras, na história e no direito, estavam direta e indiretamente deixando claro que sua teoria se assentava sobre práticas e idéias anteriores.
[3] Uma das passagens mais claras no Le Politicien sobre a teoria contratual é a que se segue: “Mas há uma lei entre ambas as partes que ordena pactos e conveniências recíprocas, que não se podem, nem pelo príncipe, nem pelos súditos, serem violadas sem que se viole a justiça”. (Le Politicien in GOULART, Memoires de l’estat de France sous Charles Neufiesme ... op. Cit., vol.. III, p. 85). Para Buchanan, autor do De jure regni opud scotos (Edimburg, 1578), o contrato é “um pacto mútuo entre o rei e os cidadãos”. (TOUCHARD, 1970, p. 50).
[4] Henri Morel fala aqui dos muitos textos do “direito público” que tratavam da lex regia e sua interpretação e as grandes divergências que haviam suscitado. (La place de la lex regia dans l’histoire des idées politiques, Études offertes à Jean Macqueron, Aix in Provence, 1970, p. 545-555).
[5] Ver Apêndice “As raízes do Contrato no Direito Romano e na Idade Média”.
[6] Uma importante observação é que a palavra ‘contrato’ tem, nas Vindiciae, uma conotação própria e abrangente. O autor emprega diversas expressões tais como convênio, aliança, pacto, como que significando diferentes aspectos do contrato ou mesmo como sinônimo do mesmo. De certa forma, estes termos têm para Brutus um significado muito próximo na sua teoria contratual: aliança [foedus], contrato ou acordo [pactum], contrato [paciscitur], contrato [contractus], contratos [contra pacta], acordo mútuo [confoederatio], acordos e convenções [conventiones].
[7] Deus era representado pelo sumo sacerdote: “A primeira era entre Deus, rei e povo, ou entre o sumo sacerdote, povo e rei. (...) Seu objetivo era que o povo fosse o povo de Deus; isto é, que este povo fosse a igreja de Deus.” (Vindiciae, p. 50).
[8] É interessante perceber que a aprovação popular e divina tinham um significado especial na investidura dos reis, mesmo muito tempo depois do contexto judaico. Kantorowicz (1998) confirma essa aprovação popular e mostra como o aspecto religioso tinha peso nesse contexto medieval: “o governo do rei era legalizado exclusivamente por Deus e pelo povo, populo faciente et Deo inspirante.” (KANTOROWICZ, 1998, p. 202).
[9] “Embora a forma da igreja judaica e também do próprio reino tenha mudado, como o que em princípio tenha sido limitado a Judá pudesse ser difundido por toda a parte do mundo, todavia o mesmo pode-se dizer definitivamente dos reis cristãos. O testemunho venceu para a Lei, e os reis cristãos substituíram os reis dos Judeus. O acordo [pactum] é o mesmo, as condições são as mesmas, as punições são as mesmas; e se elas não satisfazem o Deus Todo Poderoso, a vingança da perfídia é a mesma.” (Vindiciae, págs. 17 e 18). “Visto que se, assim como será facilmente provado a partir da Escritura, isto era lícito para todo o povo Judeu, e mesmo se aproveitava disso, então, creio eu que ninguém negará que exatamente o mesmo está manifestamente estabelecido de acordo com todo o povo cristão de qualquer reino.” (Vindiciae, p. 32).
[10] Daniel 4: 22. (Vindiciae, p. 20).
[11] Romanos, cap. 13: 1, 4, 7; Mateus, cap. 22: 21 e, I Pedro, cap. 2: 17-18.
[12] “Deus escolheu de todos os povos o povo de Israel para ser o Seu especial; e selou um aliança [foedus] com ele, de que seria o povo de Deus.” (Deuteronômio, capítulo 2) A importância deste acordo [pactum] era a seguinte: que todos juntos como um todo [universi] atentassem que Deus era adorado de uma forma pura pelas tribos de indivíduos e por seus respectivos membros na terra de Canaã, e que Ele deve ter sua igreja erigida ao centro, para a eternidade. Isto aparece em muitos outros lugares, e também claramente em Deuteronômio cap. 27. Lá, Moisés e os Levitas, como que estipulando em nome de Deus, reuniram todo o povo e dirigiram-se a eles com estas palavras: ‘Hoje, O Israel, te tornastes o povo do Senhor teu Deus; portanto, obedeçais teu Deus (...)”. (Vindiciae, págs. 32 e 33). “A partir da época em que os reis foram entregues ao povo, este acordo [referindo-se à aliança que separou Israel como povo de Deus] não caiu em declínio, como foi até mesmo confirmado e renovado.” (Vindiciae, p. 35).
[13] Um pouco mais à frente, Brutus dirá que “o povo é mais poderoso que o rei”. (Vindiciae, p. 88).
[14] É essa noção que é apresentada como oposta à garantia “real”, conforme Jolowisz e Nicholas, em seu Introdução Histórica, 1952, p. 298-301.
20 Beneficium divisiones – o direito de um devedor processado apenas por uma parte do débito ser liberado, pelo fato de outro haver sido processado. Em Cod. 8. 40. 38, Justiniano tinha abolido a regra de que, quando muitos eram responsáveis pelo mesmo débito, processando-se um liberava-se os outros. (GARNETT, 1994, p. 39).
[15] “O sacerdote pergunta formalmente se prometerão que o povo será o povo de Deus; e se serão devotos na garantia que Deus terá sempre Seu Templo e Sua Igreja no centro, onde poderá ser propriamente adorado? O rei garante, e Israel também que uma corporação de homens permaneça no lugar de uma única pessoa e de fato eles o fazem juntos, não em separado, como a clareza de suas próprias palavras, direta e sem nenhum intervalo. Então, as duas partes aqui o Rei e Israel são constituídas e por esta razão são igualmente confinadas à mesma quantia total.” (Vindiciae, p. 37).
[16] “Resumindo, se não fosse lícito dar ao povo a capacidade de cumprir o que havia prometido, Deus certamente não teria selado um aliança com aquele que não tinha o direito de prometer, nem de cumprir o que havia sido prometido.” (Vindiciae, p. 40).
[17] “A questão ficará mais clara através dos exemplos. Por que, pergunto eu, pensamos que o exército de Israel foi vencido e aniquilado junto com o Rei Saul? (I Samuel 21) (...) Não é muito mais provável que esta derrota ocorreu porque o povo não resistiu a Saul quando ele estava quebrando a lei de Deus, e o aplaudiu quando ele perseguiu impiamente os pios, isto é, Davi e os sacerdotes do Senhor? (...) Saul quebrou a fé pública dada aos Gibeonitas da época da entrada em Canaã e acabou com tantos Gibeonitas quanto pôde. (II Samuel 22). Ao fazê-lo, rompeu o terceiro preceito da lei, visto que Deus é testemunha daquele acordo [pactio]; e também o sexto, por ter injustamente matado os inocentes. Cada Tábua da Lei tinha que ser vindicada. (...) Da mesma forma, quando Davi instruiu Joabe e os sacerdotes do povo israelita a contar as pessoas, diz-se que ele havia cometido um grande crime ao fazê-lo. (II Samuel 24) (...) Devido aos prefeitos previrem que seria fatal para Israel que eles se opusessem primeiro por pouco tempo; então, tomaram o censo por amor à forma e negligentemente. Porém, todo o povo sofreu. Não apenas Davi, como também os anciãos de Israel que representavam o todo, se penitenciaram e se polvilharam com cinzas. (...) Quem não enxerga aqui que todos juntos como um todo [universi] pecaram e devem se arrepender e, resumindo, pagar a punição? (...) Daí o ponto de vista de Agostinho e Ambrósio: Herodes e Pilatos condenaram Cristo; os sacerdotes entregaram-no à execução; o povo quase chorou; e ainda juntos como um todo [universi] foram punidos. Por que então? Porque embora pudessem tê-lo arrebatado das mãos dos magistrados ímpios, não o fizeram, e portanto o mataram.” (Vindiciae, p.44 e 45).
[18] “Se é lícito resistir a um príncipe que deseja ab-rogar a lei de Deus e assolar a igreja: e também quem pode fazê-lo, como e em qual extensão.”
[19] “Se, e em que extensão, é lícito resistir a um príncipe que está arruinando a comunidade: também quem pode fazê-lo, como e com que direito isto pode ser permitido.”
[20] Para maiores esclarecimentos sobre a expressão ‘moderna’ (quando nos referimos à teoria contratual monarcômaca), veja a nota de rodapé 194.
[21] Esta é a primeira invocação da teoria conciliar no livro. O concílio de Constança (1414-1418) reuniu-se para resolver o Grande Cisma. O autor está provavelmente pensando no decreto Haec Sancta (também conhecido como Sacrosancta), questionado pelo concílio em 1415, que declarou que um concílio geral da igreja mantinha o poder imediatamente de Cristo, e que qualquer um, de qualquer posição ou ofício, mesmo um papa, era limitado a obedecê-lo nos proplemas pertinentes à fé; e além disso, que se qualquer um, incluindo um papa, se recusasse insubordinadamente a obedecer seus mandatos, e recusasse a se arrepender, deveria ser devidamente punido de acordo com as sanções da lei. O concílio de Basiléia (1431-1449) reiterou, e se estendeu sobre os decretos doutrinários do concílio de Constança. O autor poderia estar pensando em qualquer número de fontes que registram os procedimentos do concílio; um exemplo típico seria o decreto De veritate fidei catholicae per tres veritates (1439), que afirma que “é uma verdade da fé católica que o sagrado Concílio Geral mantém o poder sobre o papa e outros mais”. (GARNET, 1994, p. 47).
[22] Summa Teológica, questão III (2ª parte), art. 2. O dominicano Jean de Paris, no começo do século XIV, tornará mais explicita a fórmula ao afirmar que “o poder, seja nele mesmo, seja em seu exercício, não vem do papa, mas de Deus e do povo, que escolhe seu rei quanto à sua pessoa e quanto à sua família”. (FERET, 1896, p. 376).

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